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Pensamos em rede, conectamos ideias, buscamos sentido. Hoje, porém, assistimos a uma regressão sutil e perigosa. A era da distração infinita está nos transformando em criaturas passivas, anestesiadas pelo prazer instantâneo e entorpecidas por conteúdos inúteis.
Como mencionei em outra coluna, criatividade é filha da necessidade. Necessidade de resolver problemas. São os desafios que nos estimulam a encontrar soluções. Criatividade é isso. Fazer conexões entre elementos aparentemente não conectáveis.
É aquele exercício que fazíamos nos passatempos dos gibis, de relacionar a segunda coluna de acordo com a primeira. O que muda é a quantidade de elementos em cada coluna e, também, o número de colunas relacionáveis.
É como aquelas telefonistas do início do século XX, que ficavam conectando cabos e fazendo as interconexões. Agora imagine que cada pessoa tem no cérebro um “Divertidamente”, tal qual a telefonista do início do século passado, responsável por fazer essas ligações entre o input, o problema ou desafio, e o output, a solução criativa. Quanto mais nossa cabeça consome informações dos mais diferentes assuntos e formatos, maiores são as possibilidades de inter-relação entre eles. Ou seja, quanto mais inputs, mais outputs. É crescimento combinatório.
É simples. Sem os ingredientes certos, não tem bolo.
Existe uma máxima que diz que o sucesso é 10% inspiração e 90% transpiração. Recentemente, um estudo (1) corroborou essa ideia. Literalmente, a criatividade está relacionada à transpiração. Não ao ato de suar em si, mas ao movimento e à consequente ativação do corpo. Com base nesses resultados, dá para afirmar que a criatividade é inimiga do sedentarismo. Criatividade é movimento.
Não apenas físico, mas também mental.
O princípio da hipertrofia muscular é exatamente esse. Quanto mais eu exijo do músculo, estimulando-o da maneira correta, mais ele cresce. Por outro lado, se não o estimulo, ele definha.
O crescimento acelerado das ferramentas de IA nos permitiu um aumento brutal na velocidade de execução das tarefas. Quase tudo agora está a um prompt de distância, seguindo a lógica bíblica do “pedi e recebereis” (Lc 11,9), quase instantaneamente.
Essa facilidade tem um preço a ser pago. Talvez não integralmente agora, por nós, nesta geração, mas ele vem. E os sinais já podem ser ouvidos.
A terceirização do raciocínio nos empurra para um colapso cognitivo. Caminhamos para um emburrecimento coletivo, simplesmente porque não será, ou já não é, necessário armazenar nada no nosso HD cerebral (2). Qualquer mínima questão o chat responde. Contas, até as mais simples, textos, receitas, soluções para tudo, ao vivo, na hora, sem esforço, sem fricção e ainda com doses de motivação, validação e até uma certa bajulação.
Estamos, de fato, evoluindo ou apenas aprimorando a morte?
Deixamos de ler livros para ouvi-los enquanto fazemos dezenas de outras coisas, com atenção dividida. Agora, podemos simplesmente pedir o resumo da obra, as lições extraídas e quais aplicações práticas são mais relevantes para o nosso dia a dia.
Viramos consumidores passivos de informação, sem nos dar ao trabalho de relacioná-la com a nossa própria vida. A interpretação de texto em primeira pessoa, que já não estava em alta, caminha para a extinção.
A lei do menor esforço deixa de ser exceção e se torna regra. Abre espaço para a lei da preguiça intelectual.
O MIT resolveu analisar os efeitos neurais e comportamentais do uso de um LLM (um modelo de linguagem grande como o ChatGPT), na escrita de redações. Foram três grupos. O primeiro podia consultar o Google. O segundo tinha auxílio do ChatGPT. O terceiro usaria apenas o próprio cérebro.
O resultado mostrou um nível baixíssimo de atividade cerebral nos estudantes que utilizaram IA, além de um padrão muito mais homogêneo de palavras e conceitos entre os textos produzidos. O engajamento cognitivo entre áreas do cérebro foi significativamente menor do que no grupo brain only, evidenciando um déficit cognitivo na execução da tarefa. Outro dado relevante foi a falta de senso de autoria. Os alunos não foram capazes de reescrever ou defender o conteúdo produzido (3).
No início do texto, comparei a criatividade à nossa capacidade de relacionar repertório, informações, experiências e vivências, os inputs, na produção de uma solução nova, o output, para problemas novos ou antigos. Ora, se, como vimos no estudo do MIT, o uso de LLMs não exige engajamento profundo das áreas cerebrais, mas apenas uma fração mínima para gerar soluções homogêneas e padronizadas, o sinal de alerta está aceso.
A criatividade humana passa a ser um diferencial competitivo. Solução real, baseada em comportamentos humanos, na observação do que não é dito e em uma sensibilidade que só pessoas têm. Precisamos nos manter sedentos por inputs, mas não por vias artificiais. A alimentação criativa precisa ser ativa, preferencialmente envolvendo múltiplos sentidos, resgatando a curiosidade infantil e a humildade socrática de reconhecer que sabemos pouco.
“Stay hungry. Stay foolish" (4).
Referências
1. American Psychological Association.
Oppezzo, M.; Schwartz, D.
Give Your Ideas Some Legs: The Positive Effect of Walking on Creative Thinking. Journal of Experimental Psychology: Learning, Memory, and Cognition. https://www.apa.org/pubs/journals/releases/xlm-a0036577.pdf
2. Scientific American.
What Is the Memory Capacity of the Human Brain?
https://www.scientificamerican.com/article/what-is-the-memory-capacity/
3. MIT – Massachusetts Institute of Technology.
The Impact of Large Language Models on Cognitive Engagement and Writing.
https://arxiv.org/pdf/2506.08872v1
4. Steve Jobs. Discurso de formatura na Universidade de Stanford, 2005.
https://news.stanford.edu/2005/06/14/jobs-061505/