É com muita honra que publicamos hoje a entrevista com uma das personalidades mais importantes do cenário cultural e artístico do Brasil. Sim, caros leitores, vocês não leram errado! O papo hoje é sério: sobre arte, cultura, liberdade de expressão, solidariedade e engajamento social. Talvez não haja no Ceará um nome mais expoente para falar disso tudo do que Dora Andrade. A seguir, conheça um pouco mais dessa cearense sensível, amorosa e otimista, que responde pelo brilhante trabalho da Edisca.
Quando e de qual maneira a dança artística entrou em sua vida?
Iniciei meus estudos de dança com o mestre Hugo Bianchi aos 10 anos de idade. Estudava dança clássica e, desde esse primeiro contato, senti que a dança faria parte de minha vida para sempre.
Em qual momento você decidiu que o talento na arte iria enveredar para o âmbito profissional?
Aos 16 anos, abri minha primeira escola em Quixadá. Depois, em Fortaleza. E, por nove anos, mantive escola em Fortaleza e Sobral. Também nesse período criei o Grupo de Dança Dora Andrade. Porém, só em 1991, quando criei a Edisca, encontrei o lugar e as pessoas corretas para dar sentido ao meu ofício.
Seu trabalho se confunde com a própria história da Edisca, uma instituição respeitada em todo o Brasil. Como nasceu a Escola de Desenvolvimento e Integração Social para Criança e Adolescente?
Nasceu de forma acidental. Tinha aprovado o nosso primeiro projeto nacional. Tratava-se de um projeto do Governo Federal em parceria com o Ministério da Cultura e um outro órgão também ligado à cultura que visava a consolidação de grupos permanentes de dança nas regiões Norte e Nordeste. O projeto foi aprovado, e o órgão foi extinto. Daí, peguei o mesmo projeto e levei ao Governo do Estado, que, na época, o governador era Ciro Ferreira Gomes. Foi necessário ampliar a contrapartida, daí selecionei 50 crianças do Morro Santa Terezinha e iniciei as atividades. Com nove meses, eu havia fechado as duas escolas de dança, assim como encerrado as atividades do grupo de Dança Dora Andrade e estreava o nosso primeiro balé: O Maior Espetáculo da Terra, já com 200 educandos.
Vamos direto ao ponto: o País vive um momento delicadíssimo em suas instituições e também no aspecto econômico. Quando a crise aperta no bolso, as pessoas tendem, logo de cara, a suspender ou diminuir o investimento em trabalhos sociais e culturais. Isso ocorreu com a Edisca? E como a instituição dribla esse contexto pouco favorável?
Também sendo direta e clara, nunca tive um ano fácil. Porém, nos últimos oito anos, observa-se uma profunda transformação no cenário que determinou o fechamento de diversas organizações sociais em todo o País. As que ainda se mantêm de pé tiveram que reinventar suas práticas, reduzindo ações e número de atendimentos, causando, sem sombra de dúvidas, um prejuízo social ainda não mensurado. Na Edisca, a coisa não é diferente, porém, graças à multiplicidade de parceiros, a uma preciosa rede de relacionamentos, a uma equipe polivalente e disposta ao trabalho, a um compromisso profundo com a causa social, estamos criando caminhos que ampliem as perspectivas de sustentabilidade e dignidade institucional.
Qual o maior desafio de inserir crianças e jovens de baixa renda em uma atmosfera de arte e cultura?
Nenhum. A arte atrai o humano, trabalha na dimensão do sensível que existe em todos nós, causa grandes transformações na maneira de ver a vida e o tempo que nos foi dado a viver. Independente de classe social, a arte é uma via privilegiada para educar.

Dora Andrade e Carol Bezerra (Fotos: Lino Vieira)
O que mais te emociona em seu trabalho, Dora?
Quase tudo na Edisca tem o poder de muito me emocionar, mas adoro encontrar os educandos que já passaram pela instituição bem. Não precisam ter curso superior ou um bom trabalho como é o caso de muitos, mas perceber a dignidade em suas vidas, filhos bem criados, militância por nobres causas, isso me enche de alegria, orgulho e sobretudo de certeza de que a opção que fiz na vida foi acertada.
Como profissional e educadora artística, você sabe o quanto a arte e a cultura podem auxiliar o desenvolvimento de uma nação. O que a senhora sente quando vê tanto desprestígio e falta de apoio a atividades que poderiam auxiliar a reverter o quadro vergonhoso no qual nos encontramos?
Os episódios cotidianos amplamente divulgados pela imprensa, para mim, equivalem a queimar a bandeira nacional todos os dias na cara de todos os brasileiros. No entanto, acredito que existe o Brasil real e gosto de pensar que faço parte dele e, em fazendo parte, independentemente de qualquer cenário, até o último dia de minha vida, desejo estar contribuindo com o desenvolvimento de meu povo.
Dora, qual a avaliação que você faz da situação do Brasil atualmente?
Estamos passando por várias crises, com ênfase em uma profunda crise de valores. Mesmo assustada, considero esse momento precioso, pois é em momentos assim que surgem novas lideranças e ideias que trazem em si a potência de produzir verdadeiras transformações e mudanças.
Como interpreta a campanha de alguns grupos sociais contra exposições em artes e museus?
Fico perplexa com tanto puritanismo.
Esse cenário de censura se reestabelecendo te assusta de alguma forma?
Considero um tremendo e preocupante retrocesso.
Qual o papel do artista nisso?
Eu não diria do artista, mas de todo cidadão e cidadã brasileiros, de toda e qualquer vocação. Manter atenção redobrada nos conservadores de plantão e expressar de todas as formas possíveis a não identificação com o cinismo, a caretice e a hipocrisia.
Como você interpreta os ataques feitos a artistas consagrados como Caetano Veloso e Fernanda Montenegro?
Sinto a sociedade extremamente polarizada. É como se conseguíssemos encontrar a terceira margem do rio. É provavelmente essa incapacidade que dá espaço ao surgimento de lideranças e movimento profundamente conservadores. Nesse contexto, surgem posicionamentos e posturas que deixam a todos nós perplexos.

Marília Queiroz, Dora Andrade, Ticiana Queiroz e Isabela Barros Leal
Dora, como você cuida do corpo e da mente?
Não me cuido nem um pouco. Não pratico atividade física, não consigo fazer dieta ou meditar. Acredito que tiro energia e alegria do trabalho que muito me anima.
O que mais gosta de fazer nas horas livres?
Tenho um pedacinho de terra em Mulungu. Esse é para mim o melhor lugar do mundo. Mas tem cinco meses que não tenho tempo de lá estar.
Quais os artistas que mais te inspiram?
Sabe, as pessoas comuns me inspiram mais que as celebridades. Mas é claro que tenho meus ídolos. Sou completamente apaixonada pelo Chico Buarque.
Para você, o que está ocorrendo com o mundo?
Uma grande convulsão. E aqui não vou nem falar dos números alarmantes que atestam o tamanho do padecimento da humanidade na terra. Mas uma coisa é certa, existe também como contraponto um grupo imenso de pessoas que têm como missão de vida reduzir, senão alterar, esse cenário através das mais diversas ações. E isso faz sim uma grande diferença. Tem uma afirmação que sempre repito para mim mesma, principalmente quando estou diante de grandes confrontos. Pode parecer um tanto romântico, mas a frase é a seguinte: o bem sempre vence!
Finalizando essa super entrevista, queremos saber o que Dora Andrade pensa e deseja para o futuro?
E lá se vai mais uma afirmativa romântica: desejo viver e criar minhas filhas em um país mais justo, solidário e pleno em oportunidades reais para todas as crianças, jovens, adolescentes, adultos e idosos. Que todos, independentemente de raça, credo, gênero e classe social, encontrem seu lugar ao sol e à sombra.