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"Uma questão ética" por Pe. Airton Freire


Foto: Reprodução Instagram

O que eu vejo do lado de cá eu vejo capturado pelo teu olhar, que me vê do lado de lá, de modo que as coisas que se passam aqui, ao olhar no espelho do teu olhar, eu as vejo repetidas aí. Assim, não somente o que eu vejo é o que está do lado de lá, mas eu vejo o que, do lado de cá, eu não enxergo, a não ser a captura do teu olhar. O teu olhar, ao me ver, capta de mim coisas que eu vejo quando eu olho para o teu olhar. Coisas que estão do lado de cá, eu passo a perceber quando olho para ti, querendo apenas te ver, que estás do lado de lá. Desse modo, o que vejo do lado de lá não é apenas o que de ti eu posso ou quero ver, mas vejo, também, capturado neste instante especular, o que do lado de cá eu não consigo ver. Se eu tomar isso para considerar o olhar daquele que me ama, eu vejo um olhar que me vê e nada além do que o desejo reclama. É o olhar da completude, o olhar daquele que me quer ver e que, ao me olhar, deixa-me antever onde eu não posso me perceber ou aí não quero me ver, tampouco de mim saber. Eu vou trazer a figura de alguém, agora, que muito pouco bem me quer. Exemplo agora posto, em vista do que se quer. O seu olhar olha para mim e no seu olhar eu vejo o que de mim ele não quer (não quer dizer, não quer saber, não quer ver...). É um olhar de negação, olhar de obturação, lugar que não deixa a imagem refletir. Por isso, não quer dizer, porque, se pudesse refletir no seu olhar o que em mim de bom pudesse haver, necessariamente, ao reportar-se ao conteúdo do seu olhar (que é o olhar do que em mim ele pode ver), ele haveria de dizer. Mas isso ele não quer fazer. Por isso, ele muda o foco do seu olhar em sua visão e, ao fazê-lo, o que ele não consegue enxergar é a sua negação.

Em algum ponto, contudo, focado eu estou, exatamente no ponto onde ele, olhando para mim, localiza a sua dor, e dessa dor ele consegue falar e consegue dizer o que há. Que dor? A de não ver, apesar de olhar. A partir desse olhar, eu consigo ver o que, de outra forma, não teria eu a mediação para poder me ver. Então, deixo-me ver mesmo pelo olhar daquele que de mim nada quer ou nada pretende dizer; porque, o bem que em mim eventualmente exista (e, certamente, um bem em mim pode haver), o olhar daquele que não me quer certamente não quer dizer. O que fazer? Aproximemos mais o foco da questão, estabelecendo-o na relação Eu-Tu. Tu falas daquilo que consegues ver, porque, falando do que consegues ver, ao falar de mim, estarás falando, também, de ti (pelo menos do lugar em que tu consegues e podes viver ou te permite ser!). Então, ao dizer de mim, tu dizes da posição, do espaço em que entre ti e mim pode se estabelecer. Razão para isso houve? Pode haver? Há de se ver, mesmo que enxergar não estejas querendo, tampouco disso mesmo saber. Considera que tudo o que disseres do outro, mesmo que te pareça surpreendente, é o resultado do ângulo do teu olhar para a posição daquele que diante de ti está; pois o teu olhar pode capturar do outro coisas que, de outro ângulo, tu poderias, diferentemente, enxergar. Por isso, aquele que falar deve estar também preparado para escutar; e, se na fala houver um desejo de acertar, com certeza, a um porto seguro, ao invés de um ponto obscuro, haverá de chegar.

Nem tudo se passa do lado de lá, nem tudo se passa do lado de cá. A questão está em saber em que ponto dessas duas margens tu estás. Ao invés do olhar que julga, após tudo querer saber, eu vou te dizer uma outra forma de proceder, utilidade maior que teus olhos poderão ter: eu vou trazer a tua figura para diante de mim, e sobre mim tu vais falar. Não há problema: fala como sou ruim, dizedo que em mim outra coisa não consegues ver. Fala o quanto vontade tiveres, o quanto disposição para isso em ti existir. Afinal de contas, eu só te peço uma coisa: registra uma qualidade que não consegues negar em mim. Essa qualidade que não consegues negar em mim, eu vou escrever, o que já é uma inscrição, algo que não pode ser borrado. Escritura pode ser borrada; a inscrição não se borra-dela pode-se faz negação. Meu apelo é para que não venhas mentir. Que digas tão-somente, apesar dos erros que são tantos e que vê sem mim, a qualidade, a única, ao menos, que consegues enxergar em mim. Tu vais me dizer, eu vou registrar, e isso será a matéria sobre a qual vou me debruçar para a Deus agradecer. Essa qualidade que tu vês em mim, apesar da negação em que teimas permanecer e aí ficar, é a qualidade que eu não devo duvidar, porque, vindo de ti, não tenho eu como dizer que seja falseada, para agradar a mim. A qualidade que tu vês em mim, apesar das outras que tão sobejamente conseguiste falar, é a qualidade que eu vou tomar para dizer: “Meu Deus, apesar de tudo ou mesmo contudo, essa qualidade viste em mim pelo olhar que não me quer”.Eu posso transformá-la em prece e dizer: “O Senhor ainda opera em mim”. E essa será a razão que eu terei para agradecer.

Por Pe. Airton Freire

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